Os tempos reencontrados
João Cezar de Castro Rocha e a vocação crítica orientada ao debate público de ideias
[ Compartilho com vocês um breve trecho de um novo ensaio meu que acaba de ser publicado no livro Literatura, Cultura e Política: a obra de João Cezar de Castro Rocha em questão. A coletânea, organizada pelos professores José Luís Jobim e Roberto Acízelo de Souza, reúne textos de diversos pesquisadores do Brasil e do mundo a respeito do pensamento do professor Castro Rocha, como uma espécie de homenagem intelectual na ocasião do seu aniversário de 60 anos. Disponibilizarei aqui, ainda, o link para que possam baixar o livro completo gratuitamente ]
Las profesiones son realidades que pertenecen a la ‘vida colectiva’. Y todo lo colectivo es, en efecto, genérico, típico, estereotipado. Las profesiones son figuras tópicas de vida que encontramos establecidas en nuestro contorno social. Podemos ejercerlas sin vocación para ellas, y entonces nos limitamos a repetir en nuestro comportamiento el repertorio de conductas que su figura tópica propone. Somos el médico cualquiera, el historiador cualquiera. Pero la auténtica vocación no coincide nunca con la profesión, sino que consiste en una interpretación original de ésta.
(Ortega y Gasset, J. “Prólogo a Introdução das ciências do espírito, de Wilhelm Dilthey”. In: Obras completas, 2009, v. IX, p. 726-727)
[…] Quando menciono a ideia de vocação para tratar de investigar o perfil do crítico literário brasileiro João Cezar de Castro Rocha, parto de uma distinção, a meu ver extremamente aguda, sugerida por José Ortega y Gasset no prólogo à Introdução às ciências do espírito, de Wilhelm Dilthey, e que reproduzi no início deste texto como epígrafe. Ortega sugere ali que as profissões integram o âmbito da vida coletiva e, por isso, tendem a assumir um caráter habitual, genérico, típico e padronizado. Elas se configuram como modelos estabelecidos de atuação no meio social, passíveis de serem exercidas mesmo sem verdadeira inclinação pessoal. Nesses casos, a prática profissional se reduz à reprodução mecânica dos comportamentos previstos por esse modelo desempenhado por tantos outros, resultando em figuras intercambiáveis — como “um médico qualquer” ou “um historiador qualquer”. A vocação genuína, ao contrário, não se confunde com a profissão em si, mas se revela na interpretação singular que o indivíduo faz dela, de maneira original.
Para que fique ainda mais claro: o pensador espanhol distingue entre a função social ou laboral que alguém exerce (profissão) e a inclinação íntima, profunda e existencial que define o modo de estar no mundo (vocação). A profissão pode ser adotada, mudada por quaisquer necessidades ou até imposta de fora; já a vocação implica um chamado interior, uma espécie de destino pessoal que o sujeito reconhece como próprio. Ou seja, não se trata apenas de um projeto intelectual profissional, mas de uma tarefa vital, profundamente enraizada na experiência pessoal e em seu tempo histórico – em suas circunstâncias. E, agora, voltemos a João
.Acredito que o autor de Culturas shakespeareanas seja o crítico literário brasileiro, em nossos dias, que enfrentou com mais empenho, a partir da posição de destaque que conquistou, simultaneamente, no âmbito universitário e, posteriormente, no debate público brasileiro, a tendência dicotômica, exclusivista e renitente, de examinar o papel da crítica jornalística sob os critérios e expectativas da crítica acadêmico-teórica. Suponho, uma vez mais — e a suposição aqui será uma constante —, que essa resistência e enfrentamento formam parte importante do projeto pessoal e vocacional que orientou sua trajetória crítica a partir de um esforço de síntese produtiva entre tradições críticas que, do ponto de vista estritamente profissional, desenvolveram-se de maneiras muito distintas, mas que, dentro de uma perspectiva vocacional, sempre estiveram, de alguma maneira, articuladas.
Para entender melhor essa articulação, é preciso, primeiramente, perceber aquilo que as distingue. A diatribe mais recorrente à crítica praticada no jornalismo menciona o caráter superficial, apressado e personalista das resenhas, sua obediência a critérios do mercado editorial e, por fim, sua suposta falta de método. Tais acusações não são de todo injustas, e é fácil encontrar uma profusão de exemplos nos dias de hoje e no passado que as corroboram. Mas podemos adotar um outro enfoque, uma outra perspectiva: o elemento norteador da atividade crítica jornalística — e não esqueçamos que a crítica literária moderna nasce no jornalismo — é o trabalho cotidiano de argumentação, no qual a contingência, as avaliações críticas hinc et nunc e as constantes polêmicas atuam como fatores desestabilizadores de verdades que se pretendam últimas e indiscutíveis. Nesse sentido, o caráter contingente pode ser um fator que contribui à sutileza, à prudência, à agudeza e ao engenho das análises críticas, ainda que nada possa ser garantido a priori, claro. O jornalismo crítico, portanto, opera no risco constante e na frequente reformulação das ideias e valores, e vem daí a rica relação que a crítica jornalística estabelece com o desenvolvimento do gênero ensaístico moderno – e não esqueçamos que o registro textual adotado pelo crítico perfilado nestas páginas é, em grande medida, o ensaio.
A crítica acadêmica, por sua vez, opera em outra frequência e ritmo. Há tempo para a meditação, para a pesquisa e para o desenvolvimento de hipóteses, ideias e teorias; há a contribuição de metodologias que conduzem as análises com pressupostos mais seguros e estabelecidos por uma comunidade que os compartilham, ou pelo menos os reconhecem; há, também, um outro tipo de pacto no que se refere à linguagem: no âmbito acadêmico, o uso de vocabulário especializado, referências eruditas e jargões não costuma fazer concessões ao que chamamos “leitor comum”, pois seu destinatário final são os próprios pares, e não o público amplo que simplesmente se interessa por literatura.
Como vimos, ainda que muito brevemente, há de fato diferenças e mesmo antagonismos entre essas duas formas de atividade crítico-intelectual, e João Cezar não nega a importância histórica dessa disputa; no entanto, ele não a assume como pressuposto necessário e insuperável para as questões do nosso tempo. E aqui, cabe mais uma hipótese: acredito que o crítico carioca vem construindo, em sua atividade jornalística, teórica e docente, a partir justamente da tentativa de superação dessa dicotomia, uma ousada – e muito pessoal – alternativa de atuação intelectual diante da chamada crise das humanidades na contemporaneidade.
Na longa lista da produção bibliográfica de João Cezar, esse esforço de síntese pode ser particularmente bem percebido em Por uma esquizofrenia produtiva, publicado em 2015. O livro pode ser lido como uma espécie de rapsódia crítica — uma composição fragmentária e intensa, que articula diferentes registros discursivos sem perder a unidade reflexiva. Os textos reunidos, originalmente publicados em cadernos culturais, formam uma tessitura híbrida que transita entre o ensaio, a crítica literária e a especulação teórica mais densa. Na obra, só aparentemente desconexa, tudo converge para uma mesma inquietação: repensar o papel do intelectual e da crítica literária em tempos de dispersão cultural. Ao propor uma “esquizofrenia produtiva”, o autor não apenas nomeia uma condição, mas encena uma prática — aquela em que o pensamento se abre ao risco, à precariedade que caracteriza nosso momento cultural e ao diálogo com múltiplos públicos. O livro busca romper com a separação rígida entre teoria literária e prática crítica, mostrando que é possível produzir conhecimento acadêmico sem perder o vínculo com a cultura viva e com o leitor comum.
Creio, neste sentido que, na tradição crítica brasileira, Antonio Candido seja o primeiro grande exemplar desse tipo de articulação sintética, afinal começou sua carreira justamente nos rodapés literários, e foi sempre um defensor desse modelo de crítica, mesmo depois de conquistar o máximo reconhecimento acadêmico.
Antes de qualquer ilação precipitada do leitor que chegou até aqui, advirto: não pretendo sugerir que João Cezar resolveu seguir exatamente — ainda que em sentido inverso — os passos de Candido; e nem muito menos reproduzir mecânica e anacronicamente as estratégias e modelos retóricos dos rodapés literários em sua atividade crítica: seu gesto intelectual foi mais sutil e engenhoso. De uma maneira, digamos, rortyana, ele foi capaz de redescrever o passado — um tempo reencontrado — para abrir novas possibilidades de futuro; para si mesmo, para os profissionais da crítica e para os estudos literários em geral. O que caracteriza esse redescrição é, fundamentalmente, uma operação retórico-argumentativa que consiste em desmascarar falsas disjunções que operavam em nossa história literária e propor, como sugeri acima, novas sínteses mais produtivas para nosso tempo e nossos novos meios de comunicação e difusão de ideias.
É nesse ponto que a célebre querela entre a cátedra e o rodapé assume, em sua obra, um valor paradigmático. Muito além de uma disputa de estilos, teorias ou registros, a tensão entre esses dois polos — o saber institucionalizado e a inteligência contingencialista do jornalismo — serve a João Cezar como emblema de sua própria condição intelectual e do lugar — descentralizado — da literatura no mundo contemporâneo. Não se trata, portanto, de uma disjunção, de escolher um campo em detrimento do outro, mas, sim, de pensar a crítica a partir da tensão produtiva entre ambos, e fazer da crítica, ela própria, um espaço de atravessamentos, embates e deslocamentos. […]
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Seguem o link para baixar o livro gratuitamente e as páginas do sumário do livro fotografadas:
https://www.edicoesmakunaima.com.br/2025/11/26/literatura-cultura-e-politica-a-obra-de-joao-cezar-de-castro-rocha-em-questao








